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Mahsa Imini não voltou a casa

Nas Gargantas Soltas de hoje, Noa Brighenti fala-nos a angústia e o não-retorno de Mahsa Imini.

Opinião de Noa Brighenti

Fotografia da cortesia de Noa Brighenti

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Cheguei antes de ti. Eram sete da tarde — horário de verão — ainda havia sol lá fora.

Rodei as chaves quatro vezes na fechadura e entrei em casa: duas festas na cabeça do cão, trela atada ao pescoço e um passeio de vinte minutos à volta do bairro. Liguei-te nada mandei mensagem a perguntar a que horas chegavas.

Levei dois sacos e eram precisos três; olhei para o passeio com a cagada em cima não voltar a dar restos de pizza ao cão, eu juro que isto só me acontece a mim (suspiro) ao menos não vinha ninguém e ninguém tinha visto e ele parecia feliz com a asneira. Liguei-te outra vez nada. É chato eu sei, fico nervosa quando não sei onde estás, como se se saber fizesse alguma diferença. É uma mania: “Noa não és minha mãe”, repetes (entra a cem e sai a mil).

Rodei a chave quatro vezes na fechadura e entrámos em casa: o sofá amarrotado, a TV ligada e a minha roupa espalhada pelo chão. Passou-se uma hora e ainda não tinhas ligado — metade de mim achava que te tinham levado para sei lá onde, a outra metade odiava-te por estares sei lá onde sem me dizer. Quando estou nervosa limpo, e limpei: detergente na roupa, lixívia no chão da cozinha, até arrumei as especiarias (tu odeias especiarias); não consigo parar quieta, levo muito as mãos à cara — vai ficar oleosa — e tu, onde andas? 

Cozinhei filetes por não gostares de filetes, nem fiz arroz porque sei que gostas de arroz: só filetes com esparguete seco, pareceu-me castigo suficiente. Chegarias e pensarias que já não gosto de ti e talvez já não gostasse mesmo, quem sabe. “Desculpa desculpa” podes ir onde quiseres, só não me deixes neste silêncio, devias cá estar há quatro horas, responderia. Passei o peixe no ovo e na farinha e no ovo outra vez e fritei-o porque o óleo me dá nojo mas mais vale ter nojo do óleo que preocupação por ti. 

Pus a mesa, liguei-te (outra vez) e a comida foi esfriando. Esfriou na mesa posta e eu esfriei deitada no sofá (outra vez) com a TV ligada e a roupa espalhada pelo chão. Se adormeci foi porque sabia no fundo que chegarias a casa, ou pelo menos não oiço histórias suficientes que me indiquem que para ti — uma menina branca portuguesa de dezasseis anos — o mundo seja um bicho de sete cabeças. E voltaste, era meia noite “Desculpa desculpa” disseste “fui só jantar com uns amigos”, deste duas festas no cão e acordaste-me Podes ir onde quiseres, só não me deixes neste silêncio, devias cá estar há já cinco horas respondi. 

No Irão não dormiria e no Irão não voltarias a casa. Mahsa Imini não voltou a casa. Mahsa Imini não poderá dizer “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio /E livres habitamos a substância do tempo“1.  Não sei o que dizer ou escrever mas o nome dela chegou à minha casa e espero que chegue a muitas outras. No que depender de mim, chegará; no que depender de mim, chegarás tu também. 

[1] Sophia de Mello Breyner Andersen, Poesia (Assírio & Alvim, novembro de 2019)

-Sobre a Noa Brighenti-

Noa Brighenti começou por colecionar conchas e cromos aos 6 anos. Com 9 recitou o seu primeiro poema, teve o seu primeiro amor e deu o seu primeiro concerto no pátio da escola. Fartou-se dos museus aos 13, jurou que nunca mais pintaria aos 14 e quando fez 17 desfez este juramento. Com 20 anos, coleciona gatos e perguntas. Pelo meio, estuda Direito na Faculdade de Direito de Lisboa, anda, pinta e lê. De vez em quando escreve — escreve sempre de pé.

Texto de Noa Brighenti
A opinião expressa pelos cronistas é apenas da sua própria responsabilidade.

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