No filme “Coisas Bonitas” de Yorgos Lanthimos, situado numa hipotética realidade alternativa no final do século XIX, somos confrontados com um heteróclito médico e a sua obra maior: uma jovem mulher recuperada da morte. Não revelando demasiados detalhes sobre o enredo, basta dizer que essa mulher renasce como uma folha em branco, sem qualquer conhecimento, seja de fala, seja de conhecimento prático do mundo. Somos então convidados a seguir essa mulher, Bella Baxter, enquanto esta parte num périplo que a levará a conhecer geografias (incluindo Lisboa), pessoas, princípios e ideais diferentes.
Há uma cena que não dura mais que uns segundos, mas que, ainda assim, capturou a minha atenção e me distraiu o resto do filme. A bordo de um cruzeiro onde abunda o luxo e a opulência, Bella, ainda tentando perceber o mundo que a rodeia, inicia uma série de diálogos com um dos passageiros. Este, fazendo p papel do cético e conformista, introduz Bella ao lado negro da humanidade, expondo-a às condições de vida de quem, vivendo tão perto da opulência, vive em condições de miséria absoluta. Mas mais – e perdoem-me qualquer imprecisão pois já vi o filme há semanas e não anotei a troca de palavras exata – a certa altura da conversa, Bella pergunta de que vale a esperança. O seu interlocutor é curto e direto: de nada, o mundo é mau, sempre foi, sempre será, conforma-te. Bella, que nesta fase do filme tem ainda as capacidades cognitivas ao nível de uma criança, faz uma pausa, torce a cara em sinal de desacordo, vira-lhe as costas e responde dizendo que aquilo não faz sentido e que podemos sempre ter esperança no futuro.
Aquele momento, traduzido num curto diálogo, acaba por ter um papel fundamental no filme- É, no fundo, o momento em que Bella ousa abrir os olhos ao mundo que tem pela frente. Abri-los não apenas para absorver o que este lhe dá, mas também, e talvez sobretudo, para se tornar parte integrante e fazedora do mundo no qual agora está- No fundo, abre os olhos ao mundo, abraçando a possibilidade de o mudar.
E é esse o grande poder da esperança. Numa época em que somos confrontados com uma cada vez maior atração pelo desconhecido do abismo, é essencial dizer a todos que o futuro não se cumpre baseado em profecias. É preciso dizer àqueles que passam da desesperança ao desespero e deste à atração pelo abismo que há muito mundo a ser visto e a ser mudado. E quando nos vierem dizer que não vale a pena lutar ou ir à procura desse mundo porque, afinal, tudo será como sempre foi, tentemos a inocência de Bella e respondamos: isso não faz sentido nenhum.
Talvez o nosso olhar já esteja demasiado toldado pelo ceticismo e pela desesperança. Saibamos abrir os olhos ao mundo e, como uma folha em branco, ousemos escrever a nossa própria história individual e coletiva.
-Sobre Jorge Pinto-
Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é o autor do livro A Liberdade dos Futuros - Ecorrepublicanismo para o século XXI (Tinta da China, 2021) e co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019; vencedor do Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia). É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem digo (Officina Noctua, 2022). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE.